Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que é absolutamente normal entrar em um processo de luto pelo término de uma relação. Além disso, também não é porque algo é ruim ou machuca que não teremos um processo de luto a elaborar. Por um processo de luto, quero dizer que é absolutamente normal uma parcela de sofrimento maior ou menor, de acordo com a forma como se deu esse término e alguns outros fatores, e também um período de estranhamento consigo mesmo e de readaptação, que gosto de chamar de renascer. Isso independe de ser uma relação tóxica ou abusiva ou mesmo de se o parceiro é ou não um narcisista.
Para entender isso, precisamos pensar em como uma relação e a intimidade nos modificam. Imagine a seguinte figura: existem dois círculos completamente distintos em seus limites e com características próprias. Em algum momento esses círculos se entrelaçam, sobrepondo-se, passando a compartilhar um pedaço mais ou menos maior. Esse pedaço é a relação e os círculos são cada uma das pessoas que a compartilha. Quando a relação termina, perdemos esse espaço compartilhado: são nossas rotinas, as brincadeiras, os lugares, às vezes até mesmo a casa, alguns bens, a frequência e a forma como veremos nossos filhos. Isso tudo exige uma readaptação, mas, antes de tudo, é uma parte da nossa própria identidade que se modifica.
Mesmo quando a intimidade ainda não foi construída, ainda assim podemos ter uma perda importante e que acarreta em um processo de luto: a da idealização. São os sonhos ou mesmo o desejo, aquilo que ainda não aconteceu. Sublinho: isso é absolutamente normal, mesmo numa relação que não é abusiva. A forma como isso vai se potencializar é o que vai fazer a diferença numa relação com uma pessoa narcisista ou tóxica.
Compreendendo que o luto é um processo normal mesmo nas relações saudáveis, vamos pensar nos fatores que o desencadeiam, potencializam ou mesmo dificultam numa relação abusiva ou com um narcisista: a dependência emocional, a abstinência, a própria dinâmica dessas relações abusivas e o componente traumático.
DEPENDÊNCIA EMOCIONAL
A dependência emocional pode ser desencadeada pela dinâmica de abuso, em especial o narcisista, mas, na grande maioria dos casos, ela pré-existe à relação abusiva. Isso mesmo: há um enorme número de pessoas que caem em relações abusivas justamente por serem dependentes emocionais.
O dependente emocional é alguém que se foca excessivamente no outro. De um modo alegórico, é como se buscasse construir sempre o próprio mundo na órbita do outro. Isso cobra um preço muito caro, porque, quando uma relação termina, o que se perde é muito grande: Às vezes há a sensação de que o que se perde é o total do ser. Fácil entender porque o dependente produz uma espécie de roda que alimenta a dependência: investindo tudo no outro, perdê-lo pode equivaler à morte, ou seja, à perda completa da identidade.
O dependente emocional, geralmente por ter tido experiências precoces de abuso ou famílias abusivas, não se desenvolveu plenamente como deveria ser. Essa fragilidade de identidade o leva a sempre necessitar do outro, o que torna o luto nesse caso muito difícil ou quase impossível – porém, quando atravessado num processo terapêutico, isso geralmente significa a cura da dependência emocional.
ABSTINÊNCIA
Fator muitas vezes negligenciado, a abstinência é uma dependência real que se desenvolve em ambientes abusivos e altamente instáveis. Acontece que uma relação abusiva funciona como uma espécie de montanha russa: intercala momentos de baixa, de violência, traições e de dor, com momentos de muita gratificação, que são espécies de luas-de-mel intermitentes. Esses excessos tornam a ausência da relação abusiva um silêncio quase ensurdecedor – muitas vezes confundidos ou, de fato, desencadeadores de processos depressivos.
A abstinência exige toda uma readaptação própria, um novo se acostumar com a “normalidade”. Por isso é ela mesma um processo de luto e um tipo particular deste.
IDEALIZAÇÃO E PROMESSAS
Costumo dizer para minhas(os) pacientes: não é porque algo não foi real, que não gere sofrimento por perder. Justamente pelo contrário: muitas vezes dói muito mais abrir mão daquilo que nunca se realizou, do que daquilo que é concreto e foi vivenciado.
Relações abusivas são marcadas por um excesso de promessas e construções acerca do futuro – o que pode, por si só, ser entendido como uma forma de abuso ou, senão, como estratégia de enredamento.
O abusador pode, ainda, eventualmente dar provas de que suas promessas estão por se concretizar, mas sem que nunca realmente cheguem a tal – processo chamado de tantalização em referência a Tântalo, personagem grego que foi castigo a habitar um vale cheio de frutas e água fresca, sem jamais poder beber ou se alimentar.
Assim como um apostador compulsivo, quanto maior a perda, maior a compulsão a se tentar resgatar, ou seja, quanto mais se tenha investido em promessas vazias, mais pode se cair na armadilha de investir mais, afinal, já foi tanto investido, nada mais justo do que alcançar o que foi prometido, não é?
A idealização é outro aspecto importante: por vezes narcisistas verdadeiramente endeusam, por um momento, suas vitimas. As vítimas ficam com a impressão de que nunca mais serão amadas como foram. Na verdade, ficam apaixonadas por quem foram ou imaginaram se tornar na relação muito mais do que pelo outro.
Como aqui há um excesso de idealização, a perda, mesmo que de sonhos apenas, é sempre muito grande.
TRAUMA
O trauma pode ser entendido como a intrusão de elementos no psiquismo com os quais este não é capaz de lidar, o que resulta ou numa sobrecarga, ou numa espécie de ruptura. É de um excesso que falamos aqui – nem sempre de intensidade, mas de elementos aos quais não podemos dar sentido.
A dinâmica de uma relação abusiva, especialmente a de estrutura narcisista perversa, é uma dinâmica que assume a forma de um paradoxo: o comportamento e as mensagens são excessivamente contraditórias, de modo a não operar um sentido claro. Também é parte da comunicação perversa o não comunicar, que produz lacunas excessivas, também essas traumáticas.
O gaslighting, um tipo de manipulação que mexe com os sentidos da vítima com o intuito de fazer com que esta duvide da sua própria percepção de realidade, é outro exemplo de como isso opera.
Os componentes traumáticos, estes que não fazem sentido, ficam “presos” no psiquismo, exercendo pressão e produzido um excesso que dificulta a elaboração necessária num processo de luto.
Além disso, os reflexos desse tipo de relação, ou seja, as feridas emocionais, podem perdurar por muito tempo, o que pode fazer com que a vítima se apegue excessivamente no seu Eu do passado, que não pode ser mais alcançado, mas do qual precisa abrir mão para se tornar um novo Eu que não recuse a experiência do abuso, mas que a reintegre.
Portanto, é justamente porque uma relação abusiva é nociva, que ela produz um processo de luto, muitas vezes dificultado pela própria natureza dos impactos dessas formas de “amor” tóxico.